

fonte: Correio Braziliense 29/1/09
Biografia do maior mestre da linguagem, Henri Cartier-Bresson, escrita por um jornalista amigo do artista, chega ao Brasil 10 anos depois de escrita e três após a segunda edição
Henri Cartier-Bresson tinha horror à fama. Ser conhecido era tudo que não precisava para continuar a passar despercebido pelos alvos de suas lentes. Ficava furioso ao ser fotografado, só dava entrevistas para a televisão de costas e, para os veículos impressos, falava a conta-gotas. Não queria tornar-se o comentarista de suas próprias fotos. Por isso, recebeu com desconfiança o jornalista Pierre Assouline naquele início dos anos 1990. O então repórter de uma revista de literatura semanal esperava uma entrevista com o mestre da fotografia, mas foi tapeado. Assouline, hoje repórter do Le Monde e autor de 25 livros, passou de admirador a amigo do fotógrafo francês. Após encontros, conversas mantidas por telefone e cartas durante cinco anos, decidiu escrever a biografia de Cartier-Bresson. “Ele não queria, claro, mas fingia que não sabia”, conta. O livro saiu em 1999, cinco anos antes da morte do fotógrafo, com o título Cartier Bresson: o olhar do século, e chega agora ao mercado brasileiro traduzido pela L&PM. A biografia faz um mergulho cronológico na vida do homem que inventou o fotojornalismo moderno e deu novos rumos à fotografia no planeta. “Ele viveu todos os eventos do século 20 e registrou tudo. Isso não aconteceu com nenhum outro fotógrafo”, avisa Assouline. A divisão em blocos dedicados ao percurso do fotógrafo ao longo das décadas é convencional, mas a descrição das sucessivas viagens de Cartier-Bresson pelo planeta não ofusca o que o livro tem de melhor. Assouline explora, com olho de repórter sobretudo observador, a relação daquele que chama de caçador com a caça — no caso, a imagem. Essa conversa e as tensões nela geradas pontuam toda a biografia. Aos poucos, o leitor descobre como pensa esse fotógrafo que nasceu pintor através das descrições de como aconteceram os acasos que geraram as imagens mais famosas da história da fotografia europeia. “O museu imaginário das melhores fotos de Cartier-Bresson não seria uma galeria de retratos, mas sim uma galeria de acasos”, escreve o autor. Cartier-Bresson não tinha com a fotografia uma relação passional. O flerte com o surrealismo nos primeiros anos da idade adulta e as horas de aprendizado no ateliê do pintor André Lothe aproximaram o jovem da pintura e poderiam tê-lo conduzido para uma fotografia pouco simpática à realidade do registro jornalístico. “O surrealismo foi a formação dele, mas não a prática”, avisa Assouline. Filho de família de industriais prósperos e extremamente preocupado em não deixar sua condição financeira ditar o rumo de sua vida, o fotógrafo pastou em campos bem distantes do escritório para o qual a família o destinara. Olhar humanista Antes do encontro com a câmera Leica, Cartier-Bresson conheceu a pintura, a poesia, a literatura e a boemia dos encontros nos cafés parisienses, durante os quais tratava de ouvir e abastecer o intelecto. A fotografia viria aos poucos, embora ele nunca tenha se sentido realmente à vontade de ser chamado de fotógrafo. Preferia se definir como um artista que encontrara na fotografia seu meio de expressão. O ato de registrar surgiu como consequência do olhar humanista cultivado na inquietude de ver o mundo. A lente era extensão do olho e a câmera, da mão. Mas Assouline não coloca a sentença repetida à exaustão em textos sobre o fotógrafo em primeiro plano. É antes no formigamento existencial de Cartier-Bresson que o biógrafo insiste. África, Índia, Espanha, México e Ásia estão entre os espaços geográficos que transformaram o homem e deram à luz o fotógrafo. Foi nas andanças por esses países que Cartier-Bresson descobriu primeiro o instrumento e depois o objeto. Quis desistir da fotografia inúmeras vezes e o fez. Na Costa do Marfim e em Nova York, nos anos 1930, decidiu abandonar a câmera. Trocou a fotografia pelo cinema e foi ser assistente de Jean Renoir. Saiu da experiência um tanto decepcionado. Nenhum outro meio de registro da imagem era capaz de captar o instante decisivo que tanto o fascinava no manejo da câmera fotográfica. Na década seguinte, a da Segunda Guerra, ficou confinado num campo alemão de prisioneiros e guardou a Leica enterrada no jardim de uma fazenda. No final da vida, já pouco se interessava pela câmera. O admirador de André Kertész e Walker Evans passou a desvalorizar a fotografia. Questionado sobre suas referências, se reportava ao mundo da pintura. Às portas da era digital, Cartier-Bresson ainda pregava a pureza do preto-e-branco. A fotografia colorida, ele acreditava, era uma mentira. Se na pintura o verde tem 375 tonalidades diferentes, como poderia haver um processo químico suficientemente fiel à realidade para reproduzir as cores? Às obsessões por nunca retocar o negativo, jamais cortar o enquadramento e valorizar as tonalidades de cinzas se juntava o fato de que o fotógrafo raramente analisava seu material publicado e preferia a intimidade de um contato à ampliação em uma página de jornal ou revista. O contato era um diário, um caderno de notas pessoal, comparável à caderneta de esboços dos desenhistas, pedaço de papel revelador de um universo particular e escondido. Num mundo onde a tecnologia avançava a passos largos e o fotojornalismo ganhava alcances nunca antes imaginados, Cartier-Bresson se recolheu. Rompeu com a Magnum, agência que fundara com Robert Capa após a guerra, porque já não se reconhecia na fotografia em larga escala praticada pelos associados e no prestígio ao qual o nome da empresa lançava seus agregados. Concentrou-se nos desenhos e se aposentou da fotografia. “Desenhar obriga Cartier-Bresson a se controlar, enquanto fotografar provoca seu frenesi”, escreve Assouline, que chegou a conversar com o fotógrafo sobre a digitalização da imagem e acrescentou um último capítulo ao livro, ao autorizar a segunda edição, em 2006, dois anos após a morte do fotógrafo. “Ele tinha um câmera digital, mas não se interessava por isso.”
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