terça-feira, 26 de agosto de 2008

SABATINA FOLHA / WIM WENDERS - COMO FOI

FOLHA DE SÃO PAULO, 24 de agosto de 2008

Preciso filmar Brasília
Em sabatina, o diretor alemão Wim Wenders revela paixão por Oscar Niemeyer, conta que escreve "falsos roteiros" para obter financiamento e defende a liberdade de filmar o acaso

O CINEASTA alemão Wim Wenders, 63, apontou Brasília como o lugar em que gostaria de filmar no Brasil. Disse que se "sentiria livre para trabalhar aqui", sem "o peso que um diretor sente quando vai filmar nos EUA" e que ele sentiu quando rodou lá "Paris, Texas" (1984). Wenders definiu Brasília como"uma tela em branco", em contraste com a paisagem dos EUA, que é "a mais fotogênica, porque fazem-se (sic) mais filmes lá do que em qualquer outro lugar".
O cineasta foi sabatinado anteontem no auditório do Masp, em SP, pelo diretor brasileiro Walter Salles e pelos jornalistas da Folha Alcino Leite Neto, José Geraldo Couto e Marcos Strecker. A seguir, os trechos centrais da conversa.

BRASÍLIA É EXEMPLO PARA O MUNDO
Minha história com o Brasil começou quando eu era criança. E não tinha a ver com filmes, mas com cidades. Eu era apaixonado pelo [trabalho do arquiteto Oscar] Niemeyer e impressionado com a idéia de construir uma cidade no meio da selva - ou, pelo menos, era assim que sua obra era apresentada na Alemanha. Na parede do meu quarto, tinha todas as informações e imagens que podia ter sobre Brasília. Se eu fosse fazer um filme amanhã sobre o Brasil, não hesitaria em filmá-lo em Brasília, um lugar extraordinário e um exemplo para o mundo. Passaria algum tempo lá, até encontrar a história que a cidade me contasse. Você tem que ir a um lugar com o qual tenha afinidade e deixar o próprio lugar lhe contar uma história. Assim surgiu a maioria dos meus filmes.

MIL FILMES PARA FUGIR DO FRIO
Era jovem em Paris e queria me tornar pintor. Não conhecia ninguém, morava sozinho num quarto frio, gelado. Encontrei o lugar mais barato e quente para passar o tempo, que era a Cinemateca. Vi mais de mil filmes em um ano. Uma retrospectiva do diretor americano Anthony Mann [1906-1967] me marcou. Pela primeira vez, via filmes em que não estava só seguindo a história, mas entendendo a linguagem. A segunda grande influência veio depois de já ter feito quatro filmes. Alguém me disse que estavam mostrando um filme japonês que eu tinha que ver. Nunca tinha ouvido falar em [Yasujiro] Ozu [1903-1963]. Fui a uma sessão de "Era uma Vez em Tóquio" em Nova York e fiquei apaixonado. Vi algo tão mais profundo, transparente e transcendente do que qualquer coisa que tinha feito.

A LIBERDADE DA ESTRADA
Ainda fazia meus curtas quando percebi que os filmes podiam ser feitos no estúdio mas também na estrada. Desde que fiz isso pela primeira vez, vi que não havia nada melhor. Uma viagem não é sobre chegar a algum lugar, é a experiência de estar na estrada. A maioria dos filmes são rodados fora da ordem cronológica, primeiro o final, depois o meio etc. Uma forma insana. Num "road movie", você segue a estrada. Percebi que havia muita liberdade em conseguir filmar a história e vivê-la ao mesmo tempo. Na estrada, você fica inclinado a se abrir mais - não só à paisagem mas também em relação às pessoas que você encontra.

A TRAPAÇA DO FALSO ROTEIRO
A maior parte dos meus filmes foi feita sem roteiro ou com roteiro bastante frouxo. Os de que mais gosto são os menos cerebrais, que aconteceram espontaneamente. "Asas do Desejo" foi feito sem roteiro. Prefiro que a realidade entre o máximo possível no filme. O que acontece sem planejamento é muito mais precioso do que qualquer coisa que você possa tentar. Hoje, até para um diretor como eu, que já provou que consegue filmar sem roteiro, isso não é mais possível. Escrevo roteiros falsos, só para conseguir o financiamento, e depois os deixo de lado. Em "Paris, Texas", escrevemos um outro final, ridículo, hilário, que não seria rodado. Fizemos isso só para ter um roteiro completo. Trapaceamos. É o jeito.

O MUNDO DE HOJE É DIGITAL
O que o cinema produziu nos primeiros cem anos foi extraordinário, mas o mundo de hoje não pode ser tratado com essa tecnologia, essa gramática e esse vocabulário. As histórias que precisam ser contadas hoje lidam com pessoas que vivem num contexto social totalmente diferente do que poderia ser imaginado no século 20. A tecnologia daquele cinema não consegue mais captar a essência da vida contemporânea.

AS SALAS DE CINEMA NÃO MORRERÃO
A experiência [de assistir a um filme com outras pessoas no cinema] não se perdeu e não se perderá. Mesmo gente muito jovem gosta da sala escura. Ao mesmo tempo, gosto dos DVDs. Com eles, posso tratar os filmes e tê-los como tenho livros. Posso ir para o capítulo que gosto ou ouvir os comentários do diretor. São experiências completamente diferentes.

CINEMA REGIONAL
"Cinema europeu" é uma noção muito nova. Só nos últimos 20 anos os realizadores começaram a usar o termo. Surgiu porque precisávamos desse guarda-chuva para proteger os diversos cinemas nacionais. É a única maneira de continuarmos a fazer filmes em nossos idiomas. Não sei o quanto essa idéia está na mente do público sul-americano. Por exemplo, para o cinema brasileiro ou argentino poderem sobreviver. Essa noção existe? Se não, está na hora. Vocês vão precisar desse guarda-chuva. Quando tudo se tornar igual na era global, o nosso futuro e o futuro de muitos países vão depender do quanto as pessoas se sentirão em casa e se identificarão com aquele lugar. Só os cinemas regionais poderão dar suporte a isso. No futuro, a riqueza de um país não será a riqueza econômica, mas a da identidade própria.

IMIGRAÇÃO E XENOFOBIA
Existe na Europa uma onda de xenofobia crescente, que a globalização criou. Por causa do incrível crescimento da Alemanha nos anos 60, fomos dos primeiros países a ter exércitos de trabalhadores estrangeiros. Houve uma saturação. Os alemães acreditaram que essas pessoas iriam voltar para seus países. Mas é claro que não voltaram. A idéia de trazer aquela força de trabalho mais barata teve resultados bem diferentes do que imaginavam as pessoas. Infelizmente, muitos países europeus começaram a se tornar hostis e rígidos. Mas a maior razão para a imigração é a diferença crescente entre os países que têm emprego e os que não têm nada. No futuro, isso criará mais crise, mais violência, e forçará o planeta a buscar novas soluções. A solução não é fechar as fronteiras, mas abordar a fonte do problema - a pobreza. Se a pobreza no mundo não for reduzida, esse será o maior problema no resto do século.

ALERGIA A FILMES VIOLENTOS
Saí nos últimos anos de uns 12 filmes em que percebi que não estavam me contando por que a violência ocorria, mas entravam em detalhes porque o diretor achava que era atrativo mostrá-la. Sou extremamente alérgico a esse tipo de filme. E grato a minha mulher. Sempre permaneci nesses filmes achando que, no fim, aprenderia alguma coisa. Ela vai embora logo. Levanta e diz: "Te espero lá fora". As mulheres têm uma antena social mais sintonizada. Ela percebe de cara que é um produto comercial e que a violência está lá apenas para criar um apelo. Os filmes de guerra, mesmo os que são críticos a ela, preparam você para aceitá-la como opção. Qualquer filme de guerra prepara você para a idéia da guerra. Toda vez que os americanos começam uma guerra, pedem a Hollywood uma série de filmes sobre o tema. Não podemos combater o fato de que os filmes são o que mostram.

NA INTERNET www.folha.com.br/082354 veja trechos da sabatina.

Frases
"Era jovem em Paris e queria me tornar pintor. Não conhecia ninguém, morava sozinho num quarto frio, gelado. Encontrei o lugar mais barato e quente para passar o tempo, que era a Cinemateca. Por um franco, era possível ver cinco filmes. Nos intervalos, eu me escondia no banheiro. Ninguém ia verificar. Vi mais de mil filmes em um ano."
"Hollywood existe, sim. Eu a vi há duas semanas. Estava escrito nas montanhas: Hollywood. Todas as almas perdidas da Europa, da América do Sul, da Ásia chegam lá e acham que vão fazer filmes americanos. Fui ingênuo assim. A experiência [de filmar nos EUA] me fez perceber que nunca me tornaria um diretor americano. Aceitei que eu era alemão."


"Eu te avisei!", diz Wenders a Salles sobre Hollywood
DA REPORTAGEM LOCAL
Wim Wenders sentiu-se "o homem errado em Hollywood", porque "em Hollywood, eles querem que você entregue o que esperam - um determinado produto, que foi extremamente elaborado", afirmou, ao comentar sua experiência de dirigir nos EUA."Quando você é um diretor mais interessado no processo de filmagem e acha que pode melhorar o produto durante o processo, é o homem errado. "Depois de dizer que foi "ingênuo" ao aceitar o convite de Francis Ford Coppola para filmar "Hammett - O Falcão Maltês" (1982) nos Estados Unidos, achando que "faria um filme americano", Wenders virou-se para o diretor brasileiro Walter Salles, que o sabatinava, e disse: "Eu te avisei!". Salles, que tem entre seus oito longas um título rodado nos EUA - "ÁguaNegra" (2005) -, respondeu: "Você não foi enfático o suficiente!". Embora tenha tido "experiência difícil" nos EUA, Wenders disse que aprendeu com ela e que é "grato ao Coppola", de quem permaneceu "amigo, de um modo muito estranho". Filmar em Hollywood, disse Wenders, parecia "o convite perfeito" para alguém que "sempre quis sair de sua própria pátria". Ele afirmou que, com a experiência, percebeu que nunca iria se tornar um diretor americano." Aprendi a aceitar que eu era um alemão e um diretor alemão", disse. Ao final da sabatina, Salles presenteou Wenders com o DVD do longa brasileiro "São Paulo S/A" (1965), de Luiz Sérgio Person. "É o primo brasileiro de "Memórias do Subdesenvolvimento" [1968, do cubano Tomás Gutiérrez Alea]. É um primeiro filme [de Person] realmente extraordinário, que toca em temas importantes para você, como a colisão entre o homem e o meio", disse Salles.

"Um dia, o mundo inteiro vai querer ver seus filmes", afirma o diretor a Pedro, 14, que põe vídeos no YouTube
DA REPORTAGEM LOCAL
"Tenho 14 anos. Gosto muito de cinema. Queria ser diretor. Se o sr. pudesse me dar uma dica de como realizar esse sonho, qual seria?" A pergunta do estudante Pedro Braga, 14, conquistou a simpatia de WimWenders, que lhe indaga: "Você tem computador, certo?". Da platéia, Pedro ergue o polegar, afirmativamente. "Tem câmera digital?" Novo sinal positivo. "Sabe como editar?" A mão de Pedro oscila, num "mais ou menos". Wenders, então, o incentiva: "É fácil. O mais legal é começar com coisas pequenas, como se fosse um diário, uma historinha. Talvez você possa usar um amigo como ator. Vai impressionar sua namorada. Assim se começa. Um dia, o mundo inteiro vai querer ver você e os seus filmes".

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