terça-feira, 3 de junho de 2008

Usos do Passado

Folha de São Paulo, 11/5/2008
+ livros
Platão neocon
FILÓSOFO DA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE RELÊ OBRA DO PENSADOR GREGO À LUZ DAPOLÍTICA EXTERNA DOS EUA
PEDRO PAULO A. FUNARI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando da invasão do Iraque pelos EUA, em 2003, sabia-se que um dosprincipais assessores de Donald Rumsfeld, então secretário da Defesa, era oeminente classicista Victor Davis Hanson.Hanson notabilizou-se pelo livro "The Western Way of War" (O Modo Ocidentalda Guerra, University of California Press), além de outros best-sellers, emparticular sobre a Guerra do Peloponeso, no século 5º a.C., entre Esparta eAtenas e seus respectivos aliados.Ele formulou a teoria de que o erro de Atenas, campeã da democracia, foi nãoter cuidado da exportação do seu modo de vida democrático.Esse erro os Estados Unidos não cometeriam e levariam a chama da liberdade eda democracia às terras do Oriente Médio. A aplicação dessa doutrina levou aum dos maiores desastres da política externa americana.Estado idealAgora, o filósofo da Universidade de Cambridge Simon Blackburn volta ao temado papel dos estudos sobre a Antigüidade nos rumos e nas vidas dos homens emnossa época, em pleno século 21.Sobre a "República" de Platão, obra de quase 2.500 anos, livro de filosofia,tudo indicaria tratar-se de algo distante, no tempo, no espaço e no âmbitodas preocupações cotidianas. Nada disso. Blackburn visa a mostrar como omovimento neoconservador se funda numa leitura da obra de Platão e direcionanão apenas a política externa agressiva dos Estados Unidos como toda umasérie de ações autoritárias.O pai fundador do moderno neoconservadorismo, Leo Strauss [1899-1793],teórico político e estudioso de Platão, pôde defender noções tãocontemporâneas como a "Blitzkrieg", o terrorismo, a adoração do livremercado e da ética da escola de comércio como se surgissem das páginas dopensador grego antigo.A busca platônica pelo Estado ideal ignora os valores da democracia, doigualitarismo e da liberdade e mostra o caminho para um pesadelo. Blackburnnão hesita em acionar Hitler e o regime nazista, cujo Estado autoritário etotalitário compartilharia muitos aspectos da "politeia" ideal de Platão.A única doutrina que permanece, expressa de viva voz por Sócrates ao finalda obra, é aquela segundo a qual quem está no governo é levado a dizernobres mentiras para o bem do Estado. Strauss e os neoconservadoresaproveitaram-se disso para justificar ditaduras e plutocracias. O Platão"neocon" está distante da figura reconhecida por todos, inclusive porAristóteles.Mas isso pouco importa, pois os usos reacionários de Platão, em nossos dias,não deixam de ter as mais nefastas conseqüências.Edson Bini parte de outras preocupações ao traduzir e comentar três diálogosplatônicos. No "Teeteto", em homenagem ao conceituado matemático morto em369 a.C., o tema da conversa é a definição de conhecimento, a epistemologia.Em "Protágoras", volta-se para a natureza da virtude, a "areté".Mas é no "Sofista" que Platão questiona os conceitos de sofista, homempolítico e filósofo e em que a coletânea se aproxima, de alguma forma, daobra de Blackburn.[O presidente dos EUA, George W.] Bush não aparece uma única vez nem osneoconservadores são mencionados. Já isso ressalta que Platão pode ser lidode outra forma, com outros objetivos.Nos três diálogos, o contraditório salta aos olhos e leva à admiração mesmoos menos interessados no mundo grego antigo. Perscrutar a alma, a educação,o certo e o errado, a verdade e a mentira -esses são temas que se mostramatuais e, de certo modo, mais perenes do que as façanhas e desventurasmilitares americanas no Iraque e alhures.Usos do passadoAmbos os livros nos conduzem a um tema essencial: os usos do passado. Como onome já diz, o passado já passou e não existe mais.Num país cujo lema na bandeira é o progresso, a fuga para o futuro, e nummundo que em que tudo fica obsoleto em pouco tempo, de maneira cada vez maisrápida, nem sempre parece relevante lembrar que o presente e o futuro nãopodem prescindir da reflexão sobre o passado.Quantos soldados americanos no Iraque leram Platão ou Tucídides e suadescrição da Guerra do Peloponeso? Quantos conhecem Victor Davis Hanson ouLeo Strauss, que neles se fundaram? Quantos de nós nos questionamos sobre oque é o conhecimento?Os dois livros, em sua diversidade, se completam para alertar que vivemosuma vida acrítica por nossa conta e risco. Ou perdemos a vida, sem saber porquê.
PEDRO PAULO A. FUNARI é professor titular do departamento de história ecoordenador do núcleo de estudos estratégicos da Universidade Estadual deCampinas (SP).

Um comentário:

Erny Bo-D disse...

A observação sobre uma vida acrítica, além de pertinente a nosso contexto social é também pertinente a nosso contexto de pesquisadores. Até que ponto orientamos conscientemente nossas pesquisas segundo uma orientação filosófica e social.